ARTIGO: SOBRE A DEFINIÇÃO DA INTERPRETAÇÃO EM CASOS DE DUBIEDADES DE ENTENDIMENTO SOBRE CLÁUSULAS DE CONTRATOS ADMINISTRATIVOS.

Murilo Melo Vale

Em nome da tal “vinculação da Administração Pública ao interesse público” muitas distorções vêm ser perpetradas na gestão de contratos administrativos.

Não apenas injustiças relacionadas à aplicação despropositada de multas contratuais, retenções de pagamento, vedação ao exceptio non adimplendi… Inúmeras distorções são realizadas em nome do “interesse público” que, na prática, amparadas em subjetivismos, voltam-se contra ele, em especial, diante da insegurança jurídica gerada e das violações diretas e indiretas a legítimos interesses e a direitos constitucionais do colaborador do Poder Público.

Nesse contexto, um ponto muito pouco debatido no Direito Administrativo brasileiro é sobre como solucionar divergências interpretativas em razão de obscuridades ou dubiedades de cláusulas de um contrato administrativo. Em um sistema de relações contratuais cada vez mais complexas, fica cada vez mais comum haver divergências interpretativas, especialmente em cláusulas de contratos administrativos pertinentes à área de tecnologia e infraestrutura, nos quais se permitem variações metodológicas na execução de um serviço.

Na prática, o que normalmente se verifica é que divergências de interpretação contratual consubstanciam inadimplemento pelo parceiro privado, ignorando-se que a dubiedade de interpretação é uma questão jurídica que merece tratamento autônomo do que o mero descumprimento de uma cláusula contratual.

Sabe-se que nas leis gerais de contratação pública, não há qualquer dispositivo que regulamente situações de obscuridade ou dubiedade de cláusulas contratuais. Não se pode olvidar, certamente, que as recentes mudanças da Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657/1942) trouxe importantes balizas interpretativas, também aplicáveis na seara da contratação pública, como no caso dos arts. 22 e 33, desse diploma normativo. Mas, nenhuma busca regulamentar especificamente casos em que se depara com dubiedade de cláusulas de um contrato administrativo, ou outro instrumento contratual dessa natureza.

No caso, é de se atentar que a Lei nº 8.666/1993 dispõe, em seu art. 54[1], sobre a aplicação supletiva das normas de direito privado ao contrato administrativo. Da mesma forma, a nova Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016), determina, em seu art. 68, que os contratos firmados por empresas estatais regerão pelos preceitos de direito privado[2].

Nesse contexto, existe uma premissa legal, no Direito contratual, de que “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente (art. 423, do Código Civil).

Como se sabe, todo contrato firmado pela Administração Pública é um contrato de adesão, já que todas as suas cláusulas já são pré-determinadas no certame licitatório. Isso é o que deixa evidente o disposto no art. 40, §2º, III, da Lei nº 8.666/1993[3]. Ser um “contrato de adesão” segundo a quase totalidade da doutrina administrativista (isto, porque este autor não conhece alguém que tenha entendimento diverso) é uma das principais características do contrato administrativo. E é assim, de maneira intransigível, pois o contrato administrativo deve respeitar os parâmetros da indisponibilidade do interesse público. Não é por menos que, para o entendimento do expoente Celso Antônio Bandeira de Melo, as cláusulas contratuais seriam mero ato regulamentar, não sendo, basicamente, normas “criadas entre as partes”, conforme a clássica concepção do pacta sunt servanda advinda da teoria geral dos contratos.

Nós, particularmente, temos o entendimento de que a natureza “de adesão” do contrato administrativo advém da necessidade de se resguardar o julgamento objetivo e a isonomia concorrencial, já que não se poderia admitir, em um procedimento isonômico de escolha, que as condições contratuais fossem definidas posteriormente à seleção do candidato interessado em contratar com o Poder Público.

Por isso, sendo “por adesão”, até que se tenha norma específica regulamentadora desta questão, entendemos que o art. 423, do Código Civil, se aplica nessa situação, por determinação do art. 54, da Lei n. 8.666/1993. Ou seja, em caso de divergência na interpretação de cláusula contratual, prevalece a interpretação mais favorável ao interesse do aderente, ou seja, do parceiro privado, e não do crivo interpretativo da Administração contratante.

Não apenas isso. Não entendemos ser possível alegar a ideia de “supremacia do interesse público” como critério definidor de quem será o responsável por definir a interpretação de dubiedades de cláusulas contratuais, pois o que mais afeta ao interesse público é a segurança jurídica, o que é um direito constitucional inafastável. Mas, não preferimos não adentrar, agora, neste tema, já que demandará mais que um pequeno artigo. Talvez uma monografia. Digo, um livro. Ou um Tratado…

[1] Lei nº 8.666/1993: “Art. 54.  Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.”

[2] Lei nº 13.303/2016: “Art. 68. Os contratos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas, pelo disposto nesta Lei e pelos preceitos de direito privado”.

[3] Lei nº 8.666/1993: “Art. 40.  O edital conterá […] e indicará, obrigatoriamente, o seguinte: § 2º Constituem anexos do edital, dele fazendo parte integrante: […] III – a minuta do contrato a ser firmado entre a Administração e o licitante vencedor”.